Etnia Yawalapiti

     Os Yawalapiti vivem na porção sul do Parque Indígena do Xingu região que ficou conhecida como Alto Xingu, em que grupos falantes de diferentes línguas compartilham em grande medida um mesmo repertório cosmológico, com modos de vida semelhantes e articulados por trocas comerciais, casamentos e cerimônias inter-aldeias. Enquanto informações gerais sobre o Alto Xingu estão na página dedicada ao Parque, esta seção relata aspectos da versão yawalapiti do mundo alto-xinguano, bem como algumas especificidades desse grupo.

Nome e localização

     O nome Yawalapiti significa "aldeia dos tucuns" e é hoje usado pelo grupo como autodenominação. A "aldeia dos tucuns" seria a localização mais antiga de que se recordam e está situada entre o Posto Diauarum e o travessão Morená (sítio próximo à confluência dos rios Kuluene e Batovi). A atual aldeia yawalapiti está situada mais ao sul, no encontro dos rios Tuatuari e Kuluene, local de terra fértil, distante cerca de cinco quilômetros do Posto Leonardo Villas Bôas.

Língua

     A língua yawalapiti pertence à família Aruak, assim como as línguas mehinako e wauja, também faladas no Parque. Atualmente, apenas quatro ou cinco indivíduos falam yawalapiti, predominando na aldeia as línguas kuikuro (da família Karib) e kamaiurá (da família Tupi-Guarani), em razão dos muitos casamentos que ligam os Yawalapiti a esses grupos. Mas eles vêm demonstrando um interesse crescente em recuperar sua língua e para isso têm contado com a assessoria de uma lingüista. Desejam ainda construir uma escola indígena e, em 2002, enviaram representantes para participar do curso de Formação de Professores Indígenas promovido pelo ISA no Parque.

População

     Em 1948, imediatamente antes do reagrupamento dos Yawalapiti, Oberg (1953:44) contava 28 indivíduos; em 1954, durante a epidemia de sarampo que devastou a região, eram 25; em 1963 somavam 41 indivíduos; e em 1970 chegaram a 65 (Agostinho 1972:259-260). Desde então, houve um progressivo aumento populacional, não só devido ao crescimento espontâneo do grupo - estimulado pelos serviços de saúde no Parque e a diminuição dos conflitos entre os povos alto-xinguanos e seus vizinhos, por obra da "pacificação" promovida pelos Villas Bôas -, mas à incorporação de membros de outras aldeias, costume antigo na região, mas intensificado com a criação do Parque. Orlando e Cláudio Villas Bôas estimularam os casamentos com outros povos, principalmente com os Kamaiurá, Kuikuro e Mehinako. Embora predominem as línguas Kuikuro e Kamaiurá, por vezes a "casa dos homens" da aldeia reúne falantes de quase todas as línguas do Alto Xingu.

Em 2002, os Yawalapiti, segundo dados da Unifesp, contavam com 208 indivíduos.

Cosmologia e rituais

     Para os Yawalapiti, o mundo mítico é um passado que não se liga ao presente por laços cronológicos restritos. Assim, o mito existe como referência temporal e espacial, mas principalmente comportamental. As cerimônias são a ocasião por excelência de replicar esses modelos, mas sua relação privilegiada com o mundo do mito simboliza sobretudo a impossibilidade de sua repetição, a não ser de modo imperfeito. O ritual é portanto um momento em que o cotidiano está mais próximo do modelo ideal mítico, sem no entanto atingi-lo. (Os principais rituais do Alto Xingu estão abordados na página Parque Indígena do Xingu)

     Segundo a mitologia yawalapiti (que compartilha o repertório cosmológico alto-xinguano), a fabricação primordial dos humanos foi levada a cabo pelo demiurgo Kwamuty, que, soprando fumaça de tabaco sobre toras de madeiras dispostas em um gabinete de reclusão, deu-lhes vida. Ele criou assim as primeiras mulheres, e entre elas a mãe dos gêmeos Sol e Lua, protótipos e autores da humanidade atual. Essa mulher foi a primeira mortal em cuja honra se celebrou a primeira festa dos mortos, itsatí (ou kwarup, em kamaiurá), a principal cerimônia inter-aldeias do Alto Xingu.

     Quando nasceram os gêmeos Sol e Lua dessa mulher, vivia-se um tempo de caos, dominado pela noite e a podridão (as aves defecavam sobre as pessoas), não havendo fogo nem roças. Os vagalumes eram a única luz acessível aos homens. Os gêmeos conseguiram então obter o dia do "dono do céu" (añu wikiti), o urubu invisível de duas cabeças, atraindo-o por meio de uma isca podre. Este urubu comanda os pássaros, que deram o dia (a luz) aos homens, sob a forma de adornos feitos com as penas da arara vermelha (o sol mítico usa cocar e braçadeiras feitos de penas dessa ave).

     A maioria dos rituais yawalapiti originou-se da visita de um humano a um dos domínios - terra, água e céu - que constituem esferas bem marcadas na classificação yawalapiti, definindo as linhas mestras da classificação animal e recebendo valores cosmológicos distintos. A terra é diversificada, conforme a vegetação e a referência a eventos míticos. A distinção principal nesse domínio é entre a "selva" (ukú), onde moram animais e espíritos, e a aldeia (putaka), morada dos humanos. Nos rios (uiña) e lagoas (iuiá), além dos peixes, moram a maioria dos espíritos importantes para os Yawalapiti. No céu (añu naku; añu taku) residem as almas dos mortos; lá é o império dos pássaros, chefiados pelo urubu bicéfalo, "dono do céu". Na "barriga da terra" (wipiti itsitsu), embaixo do chão, mora uma mulher-espírito, gorda, com um seio só; ela amamenta os mortos femininos e copula com os masculinos; é a "dona da terra".

    A categoria "gente" (ipuñiñiri), segundo a cosmologia yawalapiti, distingue "índios" (warayo) e "brancos" (caraíba), tanto pela aparência física (que faz com que japoneses e chineses sejam classificados como warayo-kumã: "outro índio", "índio misterioso") como pela cultura material. Dentre os índios, os grupos do Alto Xingu são tidos como uma unidade (putáka), em contraste com os outros povos. Os warayo em geral distinguem-se dos putáka por terem um regime alimentar diferente - todos comem apapalutapa-mina, "animais terrestres" -, por serem "bravos" (Kañuká) e imprevisíveis, bem como pelo corte de cabelo e adornos diferentes. Warayo é um termo usado pejorativamente pelos yawalapiti quando alguém demonstra ausência de vergonha (parikú).

     Além de compartilharem uma série de costumes, concepções e rituais inter-societários, outro marco distintivo dos índios do Alto Xingu é um ideal de comportamento respeitoso e recatado, cujas categorias-chave, na versão yawalapiti, são parikú (vergonha) e kamika (respeito). Parikú refere-se a um estado psicológico do indivíduo, comumente acionado quando há uma transição ou confusão de papéis - como entre reclusos ou entre possíveis esposos- ou inferioridade hierárquica - como entre genro e sogro, ou no caso das mulheres em meio aos homens. Já kamika é atributo de certas relações e papéis sociais, remetendo ao comportamento pacífico e previsível, bem como à generosidade e respeito aos afins e àqueles hierarquicamente superiores. É respeito, mas é também "medo", no sentido da evitação de coisas perigosas. Ao contrário do kamika típico dos alto-xinguanos, associado ao adjetivo mañukawã ("manso", "calmo"), há o comportamento kánuká, violento e imprevisível, típico dos warayonaw (índios de fora do Alto Xingu).

Xamanismo

     Os Yawalapiti postulam a existência de uma multiplicidade de seres espirituais com influência considerável nos assuntos humanos: eles causam a maioria das doenças, encontram-se com os humanos na floresta, ajudam os xamãs e são os "donos" de certas espécies animais. Em geral, há duas classes de espíritos: os seres-kumã, que são duplos transcendentes de espécies animais e classes de objetos cotidianos; e os apapalutápa, que possuem nomes próprios, de correspondência mais vaga com as entidades do mundo cotidiano (incluindo o trovão, o raio e espíritos com uma forma singular). Em ambas as classes, é comum conceberem-se os espíritos como possuindo uma essência antropomorfa por baixo de uma aparência monstruosa, concretamente pensada como uma roupa ou envoltório (iná). Os espíritos são invisíveis, munukinári; só aparecendo para os doentes e os xamãs em transe. Ver um espírito acidentalmente (sempre quando se está só e fora da aldeia) provoca por si só doença ou morte.

     Os apapalutápa estão usualmente em toda parte, menos dentro da aldeia, onde surgem apenas em situações extraordinárias de doença, xamanismo e ritual. Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os apapalutápa: os xamãs e os feiticeiros. Todo espírito é por definição um iatamá, xamã. Alguns são xamãs específicos de certas ordens animais, mas "xamã" e "espírito" são em certa medida sinônimos.

     As relações dos apapalutápa com a sociedade yawalapiti são predominantemente individuais, sob a forma básica da doença. À parte os males causados por feiticeiros, os quais podem, de resto, prevalecer-se da ajuda de espíritos, todas as doenças decorrem de um contato com o mundo sobrenatural. O doente é alguém que foi "morto" (kuká inukakína, o que se diz igualmente do xamã em transe) por um apapalutápa. Tal estado se deve à penetração de dardos invisíveis no corpo, que o xamã extrai e exibe na sessão curativa. Ele também pode ser causado por um roubo da alma (ipaïori) pelo espírito, que a leva para a aldeia dos apapalutápa. Este roubo é experimentado pelo doente como uma viagem onírica especialmente intensa (todo sonho ou delírio febril é uma viagem da alma); ela termina quando o xamã repõe a alma com o auxílio de uma boneca (yakulátsha: ver yakulá, "sombra", "alma dos mortos") concebida como uma imagem do doente.

     Uma vez curado, o indivíduo passa a dever algo para o espírito que viu. Ele deve então patrocinar uma cerimônia em que representa o espírito por meio de cantos, danças e adornos/pinturas corporais. Essa cerimônia é o momento em que o grupo de substância do doente (que tende a ser uma unidade de produção cotidiana) distribui comida a toda a aldeia. O espírito é encarnado-representado pela comunidade, e ambos são alimentados pelo grupo que, idealmente, jejuou durante a doença: a comida distribuída é dita "(nome do espírito) inúla". O doente torna-se patrono (wököti) da cerimônia, e dela não participa como ator.

     O xamã, assim, exerce o controle social das relações entre a aldeia e o mundo sobrenatural: ele regula as relações entre homens e espíritos que habitam as águas e a floresta; através de seu diagnóstico, os espíritos causadores de doenças são socializados pelo ritual. O feiticeiro, por sua vez, representa o paradigma do ser marginal: é o homem da porta traseira, que invade as casas, que coloca feitiço nas roças, que se transforma em animal no mato.

     A vocação xamânica é uma doença em que um espírito se manifesta e dá tabaco ao noviço, ensinando-lhe cantos e remédios. A pimenta e o tabaco são ditos Kahiúti, dolorosas ou ardidas, e constituem parte da dieta própria dos xamãs. O tabaco é a substância predileta dos espíritos, que apreciam seu perfume örö (o qual contrasta com o sangue e os fluidos genitais, detestados pelos espíritos) e é um supremo agente transformador. O demiurgo Kwamuty fabricou os primeiros humanos assoprando fumaça sobre toras de pau; Sol ressuscitou Lua fumigando-o. Os mitos abundam em episódios onde o tabaco vivifica, repara e refaz. As flautas apapálu, originalmente espíritos aquáticos, foram capturadas mediante o recurso à pimenta e, sobretudo, ao tabaco.

FONTE: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yawalapiti