Etnia Kamaiurá
Os Kamaiurá constituem uma referência importante na área cultural do Alto Xingu, em que povos falantes de diferentes línguas compartilham visões de mundo e modos de vida bastante similares. Estão ainda vinculados por um sistema de trocas especializadas e rituais intergrupais, os quais recebem diferentes nomes no interior de cada etnia, mas que ficaram mais conhecidos (pelos de dentro e os de fora do universo xinguano) justamente pelos termos usados na língua Kamaiurá, tais como o Kwarup e o Jawari.
Localização e população
Os Kamaiurá jamais se afastaram de sua área de ocupação, na região de confluência dos rios Kuluene e Kuliseu, próxima à grande lagoa de Ipavu, que significa, na língua deste povo, “água grande”. Hoje em dia, a aldeia dos Kamaiurá se localiza cerca de dez quilômetros a norte do Posto Leonardo Villas-Bôas, a aproximadamente 500 metros da margem sul da Lagoa Ipavu e seis quilômetros do rio Kuluene, à sua direita. Constituem o território Kamaiurá imediato a aldeia, formada pelas casas e pelo pátio cerimonial, a mata vizinha, a lagoa de Ipavu e os riachos que nela deságuam.
Sua população, em 2002, somava 355 indivíduos, deflagrando um significativo crescimento demográfico em relação ao início da década de 70, quando eram 131. Em 1954, quando houve uma forte epidemia de sarampo na região, se viram reduzidos a 94, em contraste com 1938, quando eram cerca de 240, e no período em que foram visitados por Von den Stein, 1887, em que somavam 264 pessoas.
Os Kamaiurá no sistema ritual do Alto Xingu
Mitos e rituais intergrupais expressam a forte articulação entre os povos do Alto Xingu e refletem a crença Kamaiurá em um mesmo ato de criação de todos esses povos, sendo o herói cultural MaWutsinin o responsável pelo sistema uno e coerente que engloba a cultura e a natureza alto-xinguana. O estado ideal da criação é ritualizado no kwarup, que celebra a solidariedade entre os povos do Alto-Xingu. A cerimônia reúne, numa única aldeia, várias etnias alto-xinguanas, que celebram os mortos da aldeia que o realiza, marcando o término do período de luto. Trata-se da dramatização de uma das versões do mito de criação do homem, conjugada com competição na luta corporal huka-huka e trocas eventuais de artesanato.
Entre os rituais intergrupais que ocorrem regularmente, pode-se destacar o Kwarup (a festa dos mortos), o Jawari (festa de celebração dos guerreiros) e o Moitará (encontros para trocas formalizadas).
Essa solidariedade alto-xinguana é, entretanto, negada em outra cerimônia, a festa do Jawari, que enfatiza a distinção e oposição dos grupos participantes. O morto, homenageado no Kwarup, pode vir a receber homenagem menor no Jawari. Para essa festa apenas um grupo é convidado. Seu ponto alto é a competição esportiva de arremesso de flechas com propulsor, que simboliza a atividade guerreira e, nesse sentido, pode ser interpretada como estabilizadora das relações interétnicas, uma vez que canaliza atitudes de rivalidade e tendências agressivas para uma prática esportiva.
Desse modo, confrontando as duas cerimônias, tem-se, de um lado, a expressão ritual de solidariedade (kwarup) e, de outro, a maior manifestação da hostilidade intergrupal (jawari). Ambas podendo ser entendidas como expressões simbólicas de uma realidade social em que o etnocentrismo coexiste com alianças e obrigações assumidas no convívio entre os povos. Assim, apesar de unidos por vínculos estreitos e participando de uma cultura relativamente similar, os alto-xinguanos não abrem mão de suas respectivas identidades étnicas.
É no zelo de manter-se uno que cada grupo se distancia dos demais, ressaltando seus traços diferenciados, competindo para obter maior prestígio, em articulações que resvalam por vezes em hostilidade. O jawari constitui assim a síntese de uma das faces do convívio que marca expressamente a identidade de cada grupo. É no kwarup que os índios se identificam como alto-xinguanos.
A troca de bens, por sua vez, tem sua importância reafirmada no moitará, marco da estreita vinculação econômica entre os grupos (a respeito do moitará, ver item “Reciprocidade Kamaiurá e o Moitará”).
Atividades produtivas
No processo de produção de alimentos, a agricultura ocupa lugar de destaque. Dela provém os ingredientes fundamentais para a elaboração do beiju, produto básico da alimentação Kamaiurá.
Os moradores de uma casa organizam o trabalho de produção de mandioca sob a coordenação do dono da casa. Tanto na abertura da roça como na colheita, o trabalho pressupõe cooperação entre o grupo doméstico, mesmo que cada família nuclear possua sua própria roça.
Os homens preparam a roça e as mulheres retiram a mandioca do solo. Várias delas participam da colheita de uma mesma roça. Na aldeia, a mandioca é processada pela mulher, que dela extrai a poupa e o polvilho, ambos ingredientes fundamentais para o preparo do beiju. Outro alimento que se obtém da mandioca é o mohete, caldo grosso e adocicado que resulta da fervura da água que lavou a polpa.
Depois de secos, a polpa de mandioca e o polvilho são armazenados dentro da casa em depósitos cilíndricos que variam de 2,40m a 2,60 m de altura por 0,80m a 0,85 m de diâmetro. Constitui reserva para uso diário e para a alimentação durante as chuvas. Caso algum membro residente tenha de assumir a responsabilidade de distribuir beiju em situações cerimoniais, inicia-se produção extra, que fica em recipiente distinto. O produto derivado da mandioca é armazenado em lugar comum dentro da casa, sendo portanto de consumo coletivo, independente da participação que cada um teve na sua produção.
Assim como o processamento da mandioca, a elaboração do beiju é tarefa feminina. Várias vezes por dia, ativa-se o fogo sob a chapa de cerâmica onde se assa o beiju. Ali mulheres se alternam, ora assando apenas para o marido e filhos, ora para todos os moradores. Come-se beiju a toda hora: com peixe assado ou ensopado, apenas com pimenta, puro ou dissolvido na água, ou ainda sob a forma de cauim.
Há ainda uma distribuição de beiju entre as casas da aldeia que não reflete uma necessidade de consumo, uma vez que todas produzem o alimento, mas que põe em evidência a fartura e a generosidade do grupo doméstico doador, características bastante valorizadas por essa sociedade. Mesmo durante as chuvas, quando a pesca é pouco produtiva e é baixo o estoque de mandioca, por vezes leva-se beiju com peixe ensopado a outras casas. A distribuição de alimento ultrapassa os limites da aldeia, uma vez que nos encontros cerimoniais cabe sempre ao grupo hospedeiro fornecer farta alimentação aos convidados.
O peixe, juntamente com o beiju, constitui primordial alimento Kamaiurá (assim como dos demais alto-xinguanos), sendo a única fonte regular de proteína animal. São várias as técnicas utilizadas, cada qual exigindo diferentes formas de cooperação. Assim, a técnica do timbó, que consiste no envenenamento de águas previamente represadas, envolve a participação da maioria dos homens da aldeia. Os peixes mortos, quer pelo efeito do veneno, quer flechados, são moqueados no próprio local da pescaria. Menor número de homens participa da pesca com rede de nylon, cujas operações dispensam cooperação mais ampla. Já as várias formas de pesca com arcos e flecha, pequenas redes nativas, armadilhas e anzol são realizadas por um ou dois indivíduos, ou entre os membros da família nuclear.
Enquanto na seca o peixe faz parte da dieta de todo dia, nas chuvas sua relativa escassez é compensada com alimentação mais variada, como milho, mamão, abóbora, melancia, entre outros. A agricultura Kamaiurá ainda inclui o cultivo de outras plantas tanto para fins cerimoniais (urucu e fumo), como para atender à produção de diversos bens artesanais (cabaça e algodão). Nesses casos, o trabalho de plantio e colheita é usualmente individual, sendo que homem cuida do fumo e mulher do algodão.
A caça de algumas aves e pequenos animais, assim como a coleta de frutos silvestres, colaboram também para uma alimentação variada, mas desempenham papel secundário no que diz respeito à produção de alimentos. Com relação à caça, o trabalho masculino é quase sempre individual, os principais objetivos são garantir alimento para a harpia (cuja presença é característica das aldeias alto-xinguanas e que fica presa numa grande gaiola cônica, feita de varas), substituir o peixe na dieta de pessoas atingidas por tabus alimentares e obter penas para a produção de artesanato.
Na coleta, o trabalho é usualmente coletivo e envolve a participação de mulheres e crianças. Os principais produtos são mel, pequi, jenipapo, mangaba, formigas, ovos de tracajá e lenha. Dentre eles, a castanha extraída do pequi destaca-se dos demais como alimento cerimonial distribuído por ocasião do Kwarup.
Em relação à produção de artefatos e indumentária, ainda que boa parte da matéria-prima usada na elaboração seja fruto de trabalho cooperativo no grupo familiar, os artigos finais são criados através de operações individuais. Mas o artesão nem sempre se torna o proprietário do novo bem, principalmente em relação aos instrumentos de trabalho.
Artigos de metal, dos quais depende a quase totalidade das atividades produtivas masculinas, não substituíram integralmente o artesanato indígena usado pelas mulheres na produção de alimentos. Assim, panelas e caldeirões de metal competem com as cuias usadas no transporte e armazenamento de água, sem entretanto, ameaçar a posição das panelas de cerâmica, elemento central da cozinha Kamaiurá, obtidas através da troca com o grupo wauja.
Grande parte dos materiais empregados na elaboração do artesanato é de origem nativa – madeira, embira, fibra de buriti, algodão etc. Mas usam-se também produtos industrializados, como contas e miçangas de porcelana e vidro, fio de lã e de algodão, lata, prego, corante etc. Dentre esses itens, o fio de lã compete com o de algodão nativo e tende em alguns casos (como para a confecção de redes de dormir) a substituí-lo integralmente. Outros, como as contas e miçangas, altamente valorizadas na elaboração de colares e cintos, não diminuíram a importância dos similares nativos – de contas de caramujo – produzido pelos Kalapalo e Kuikuro.
FONTE: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kamaiura